quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Passagem das horas

Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.
Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.
Sou mais variado que uma multidão de acaso,
Sou mais diverso que o universo espontâneo,
Todas as épocas me pertencem um momento,
Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.
Fluido de intuições, rio de supor-mas,
Sempre ondas sucessivas,
Sempre o mar — agora desconhecendo-se
Sempre separando-se de mim, indefinidamente.
Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,
Ó barco com capitão e marinheiros, visível no símbolo,
Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no crepúsculo
Em que me sonho possível —
Onde estais que seja um lugar, quando sois que seja uma hora?
Quero partir e encontrar-me,
Quero voltar a saber de onde,
Como quem volta ao lar, como quem torna a ser social,
Como quem ainda é amado na aldeia antiga,
Como quem roça pela infância morta em cada pedra de muro,
E vê abertos em frente os eternos campos de outrora
E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua
Na tragédia de já ser passado,
Ó terras ao sul, conterrâneas, locais e vizinhas!
Ó linha dos horizontes, parada nos meus olhos,
Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,
E como oscilas no que eu vejo, de aqui!
Merda p'rá vida!
Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,
Ter deveres estagna,
Ter moral apaga,
Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral,
Vive na rua sem siso.


                         
Álvaro de Campos





sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O Manuel foi à cidade.

Um dia fui à cidade, vi as luzes, ouvi os carros, as buzinas, as injúrias das pessoas com pressa para a vida de uma vida sem pressa de nada.
Reparei nas pessoas estáticas no metro, no autocarro, no comboio, de olhos vazios, de mentes em branco e gastas até à tona do seu ser. Já não sabiam ser pessoas.
Quando regressei, desejei aquela paragem, sem paragem alguma, desejei absorver em mim tudo o que meu não era.
A mãe disse-me que eu a fazia lembrar-se de um tal Álvaro de Campos. Não estou a ver quem seja tal senhor, porque não há nenhuma família Campos na minha aldeia. Só me disse que ele sonhou o maior e o pior sonho do Homem.
Cheguei a conhecê-lo, embora nunca nos tenhamos cruzado.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Maria

Olá, sou a Maria, sou uma menina pequena, tenho olhos e cabelos cor de noz tal como muitas meninas na minha escola. A minha mãe é alta, esbelta, e loura com uns olhos como os meus. Vejo como o pai olha para ela, com admiração, quase como se não acreditasse que alguma vez a chegou a conhecer. Eu também a vejo assim, admiro-a. Todos os dias encosto-me à porta do quarto deles para a ver a arranjar-se, a pentear os longos cabelos, a escolher cuidadosamente a roupa e a colocar o batom que a faz mais elegante do que já é. Todos os dias me dá um beijo e sai.

Um dia não voltou.

Agora já sou mais crescida, mas continuo pequenina, não tenho cabelos louros.Todos os dias de manhã vou ao espelho dela, penteio-me como ela, escolho a roupa como ela, e às vezes, sem o meu pai perceber também ponho um bocadinho de batom. Mas ao contrário de como a mãe o fazia, eu não ponho batom nos lábios, ponho na face, e assim, ainda sinto o beijo dela todas as manhãs.

Todos os dias vejo os olhos do pai, têm sempre o reflexo da mãe quando ia embora. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

De quando em vez

De quando em vez, a vez tem quando e, o passo a que se aproxima é o mesmo passo a que se afasta.