quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A Maria e o Manuel

Saí da escola,
corri por entre passeios e verdes árvores,
até que fui parada.

Senti um leve e hesitante toque nos nós dos dedos,
até que mais cinco dedos deram nó com os cinco que já lá estavam.

Não precisei de olhar,
senti o fresco e tão indescritivelmente característico cheiro,
que me deixa confortável, de uma forma quase automática.

Não precisei de uma única palavra
para saber que todos os meus problemas tinham sido ouvidos
e compreendidos.

As minhas mãos frias encontraram o conforto nas suas,
e a realização do meu conforto encontrou lugar na aventura,
que agora se completam.

Cheguei a casa e entrei,
não precisei de olhar para trás para saber que ele lá estava
a gravar o seu nome nas minhas costas.


domingo, 10 de novembro de 2013

Manuel e o diário.

Fui ao guarda-fatos dos pais. Muito sorrateiramente, tentei abrir sem ruído, a porta que ginga desde que me lembro. Felizmente, ninguém ouviu, algo que não me surpreendeu, porque já atingi com mestria, a arte de ser invisível. 
Esta viagem ao armário dos meus pais deve-se à curiosidade de encontrar algo lá que nunca tenha visto. Talvez uma fotografia daquelas em que só se vê sorrisos, ou até cartas do pai para a mãe.
Encontrei algo diferente. O diário da mãe. 
Folheei e deparei-me com uma data muito recente, 23 de Outubro de 2013, pelo que comecei a ler.

"O José chega hoje, não sei como o receber se não com lágrimas nos olhos. Sempre que penso em tudo o que se passou nestes últimos 4 meses sinto uma mágoa tão negra a atravessar o meu corpo, algo que nuca antes senti. 

Hoje rolam na minha cabeça todas as palavras que disse nas inúmeras chamadas que fiz para Paris:
     - Não desistas agora, amor, por favor! Vamos sobreviver a isto. Ele prometeu-te o dinheiro para o final de todo o trabalho. Acredita que todo este sofrimento vai valer a pena.
     - Não aguento mais, quero voltar. A única coisa que ainda me mantém cá é a esperança de chegar a casa e poder dar-vos uma vida melhor.
     - Homem, já te disse para deixares de pensar dessa maneira! Isso dos homens serem os únicos a ganhar dinheiro para a família já não existe nestes tempos. As coisas já não são assim. 
     - Como é que estás? E o Manuel?
     - Estou bem, cá nos vamos aguentando. Tem sido difícil para o Manuel, porque estou quase sempre fora, em casa das patroas. Pouco tempo passo com ele, e coitado, sinto que ele precisa... Mas não penses muito em nós, que estamos bem. Não te preocupes que ainda hoje mandarei o dinheiro para a tua conta.

Triste o dia, em que nos bateram à porta para oferecer emprego ao meu marido. Triste, porque não fomos capazes de ver tudo o que se ia passar. Em dois dias roubaram-mo e levaram-no para França, exploraram-no como um cão e nunca lhe deram dinheiro em troca. Trabalhou de sol a sol, todos os dias da semana, na esperança de, no último ser recompensado. Mandaram-no embora de mãos a abanar, depois de todo o dinheiro que para lá mandei, para que ele pudesse comer, pelo menos. Tudo em vão."

Foi aí que todo esse dia fez sentido. O porquê do pai chegar a casa sem um sorriso, com o olhar cravado no chão e roupas imundas do suor, fruto desses meses de tortura. Para mim foi toda uma incógnita, aquele dia estranho, de chegada. 
Caiu-me agora a última lágrima. Nunca pensei conseguir albergar tamanha tristeza.
Guardei o diário exactamente onde estava antes, e nunca mais lá voltei.


quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Passagem das horas

Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.
Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.
Sou mais variado que uma multidão de acaso,
Sou mais diverso que o universo espontâneo,
Todas as épocas me pertencem um momento,
Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.
Fluido de intuições, rio de supor-mas,
Sempre ondas sucessivas,
Sempre o mar — agora desconhecendo-se
Sempre separando-se de mim, indefinidamente.
Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,
Ó barco com capitão e marinheiros, visível no símbolo,
Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no crepúsculo
Em que me sonho possível —
Onde estais que seja um lugar, quando sois que seja uma hora?
Quero partir e encontrar-me,
Quero voltar a saber de onde,
Como quem volta ao lar, como quem torna a ser social,
Como quem ainda é amado na aldeia antiga,
Como quem roça pela infância morta em cada pedra de muro,
E vê abertos em frente os eternos campos de outrora
E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua
Na tragédia de já ser passado,
Ó terras ao sul, conterrâneas, locais e vizinhas!
Ó linha dos horizontes, parada nos meus olhos,
Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,
E como oscilas no que eu vejo, de aqui!
Merda p'rá vida!
Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,
Ter deveres estagna,
Ter moral apaga,
Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral,
Vive na rua sem siso.


                         
Álvaro de Campos





sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O Manuel foi à cidade.

Um dia fui à cidade, vi as luzes, ouvi os carros, as buzinas, as injúrias das pessoas com pressa para a vida de uma vida sem pressa de nada.
Reparei nas pessoas estáticas no metro, no autocarro, no comboio, de olhos vazios, de mentes em branco e gastas até à tona do seu ser. Já não sabiam ser pessoas.
Quando regressei, desejei aquela paragem, sem paragem alguma, desejei absorver em mim tudo o que meu não era.
A mãe disse-me que eu a fazia lembrar-se de um tal Álvaro de Campos. Não estou a ver quem seja tal senhor, porque não há nenhuma família Campos na minha aldeia. Só me disse que ele sonhou o maior e o pior sonho do Homem.
Cheguei a conhecê-lo, embora nunca nos tenhamos cruzado.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Maria

Olá, sou a Maria, sou uma menina pequena, tenho olhos e cabelos cor de noz tal como muitas meninas na minha escola. A minha mãe é alta, esbelta, e loura com uns olhos como os meus. Vejo como o pai olha para ela, com admiração, quase como se não acreditasse que alguma vez a chegou a conhecer. Eu também a vejo assim, admiro-a. Todos os dias encosto-me à porta do quarto deles para a ver a arranjar-se, a pentear os longos cabelos, a escolher cuidadosamente a roupa e a colocar o batom que a faz mais elegante do que já é. Todos os dias me dá um beijo e sai.

Um dia não voltou.

Agora já sou mais crescida, mas continuo pequenina, não tenho cabelos louros.Todos os dias de manhã vou ao espelho dela, penteio-me como ela, escolho a roupa como ela, e às vezes, sem o meu pai perceber também ponho um bocadinho de batom. Mas ao contrário de como a mãe o fazia, eu não ponho batom nos lábios, ponho na face, e assim, ainda sinto o beijo dela todas as manhãs.

Todos os dias vejo os olhos do pai, têm sempre o reflexo da mãe quando ia embora. 

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

De quando em vez

De quando em vez, a vez tem quando e, o passo a que se aproxima é o mesmo passo a que se afasta.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O Manuel foi à aula de Português

A professora falou em adjectivos. Disse que nesse dia só íamos falar em adjectivos de grau normal.
Quando cheguei a casa todo esmurrado, a minha mãe perguntou-me o que se tinha passado, e eu, falei-lhe dos meninos que me tinham empurrado no recreio. Fui descansar, mas entretanto ouvi que na cozinha, a minha mãe sussurrava alto, "Crueldade, crueldade". Reparei na fúria com que colocava as batatas na panela velha da sopa. 
Será que a professora se tinha enganado? 
"Cruel" não era, sem dúvida, um adjectivo de grau normal...

sexta-feira, 12 de julho de 2013

O Manuel quer chorar

A minha respiração está acelerada, inconstante, insuportável... Quero tanto chorar, que não consigo, por isso, carrego o peso no coração. Este peso que trago comigo, dificulta-me o andar, é o acumular de muitos pensamentos e angústias juntas.
Foi hoje que vi o meu mundo a diminuir de tamanho, quando já toda e qualquer pessoa me insubordinava o pensamento.

terça-feira, 9 de julho de 2013

O Manuel caiu.

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ... corria e ...   ...   ...   ....   ... corria ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ... e ....   ...  e ...   ... e ...  e ..e .. e .e,    caiu...
Sem forma, sem jeito e com muita muita vergonha, Manuel caiu no meio do relvado que não tinha fim.
Era verdade, o relvado nunca nunca nunca acabava, mas o que acabava, era a sua dignidade. À medida que foi recuperando os sentidos, Manuel ouvia risos, que não eram aqueles risos normais e saudáveis, eram risos de gozo, aqueles que ele mais odiava.

Todos os dias se recostava numa ombreira, onde de manhã, estava sombra, era escuro e ninguém o via. Era a forma que encontrava para estar em paz consigo mesmo. Era a única maneira que tinha para dar atenção às vozes que falavam na sua cabeça. 

A rejeição já era tão insuportável, que Manuel achou que se nunca mais falasse, tudo passaria ao seu lado e não o atingiria. Manuel seria invisível, como tantas vezes desejara.
Oh, que felicidade, que rubor intenso que sentiu ao realizar esta magnífica ideia! 

[À noite]

Oh, que tristeza, tão grande e tão profunda. Ninguém lhe falou. A verdade é que, ao tentar que nada o atingisse, acabou por ser esfaqueado pelas costas, pela arma mais poderosa de todas, a solidão.

Nesse dia, entendeu o que era, na verdade, ser só. Nunca mais esqueceu esse sentimento, que para ele, parecia uma forma de viver...

domingo, 7 de julho de 2013

Olá, eu sou a Maria.

Ao longe avistei o Manuel, mas, perdi o controlo, e as lágrimas corriam a minha face sem qualquer permissão... Esforcei-me ao máximo por esboçar um sorriso quando ele reparou em mim, porque não queria que fixasse os meus olhos delineados por dor...
Ele sorriu (timidamente) de volta, e depois, nem mais uma lágrima ousou sair dos meus olhos, que já não estavam tristes.
Fugi ao encontro de nada, porque sentia que tinha encontrado tudo. 
  -  "Oh, Manuel..." - soltou num suspiro ofegante.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O Manuel e a Maria

O Manuel caminhava alegremente quando viu Maria a chorar atrás de uma árvore.
Sem conseguir esconder a curiosidade, foi para perto dela para tentar perceber o que se tinha passado. 
Quando o viu, atrapalhada, limpou as lágrimas, sorriu e foi-se embora. Sem pressas, desvaneceu no horizonte de arvores... 
Manuel não conseguiu deixar de reparar na facilidade com que as pessoas se escondem. 

sábado, 22 de junho de 2013

Olá, sou o Manuel

Olá, sou o Manuel.
Hoje fui, hoje sou, amanhã serei.
Já não tenho dúvidas, porque já não penso.
Sou feliz.
Até amanhã!

Crítica tecnológica

O horror de tempo que passamos em frente a um ecrã. As horas que podíamos passar a ler, a escrever, a ouvir música, a compor, a degustar o tempo.
A desesperante necessidade de saber o que fazem os outros. A incurável sede da aprovação alheia que nunca é saciada. Tudo isto nos afasta de nós, tudo isto nos leva para onde não devíamos ir. Paramos de questionar, paramos de pensar. Para que serve então a concordância de um estranho, se passado uns tempos, os estranhos passamos a ser nós. Para que serve conhecer os outros, se a cada momento nos conhecemos cada vez menos?
Digamos que todos se esquecem que saber estar sozinho é a melhor maneira de não estar só.
É verdadeiramente decadente a forma como algo como um simples clique pode alterar a forma como alguém se vê, sendo um movimento tão insignificante, que por detrás só tem impulso.
É de condenação pessoal a importância que se dá a gestos inconscientes, a coisas que saem de um cérebro esbranquiçado pelo uso da tecnologia.


Esquecer, sentir, e voltar a esquecer

Como sabe bem suprimir os sentimentos!
Oh... Deixar de sentir, de sentir, de sentir, de sentir... Esquecer o eco incessante que sopra aos ouvidos. Deixei de sentir e, por momentos, senti-me feliz. Sem qualquer "mas", fui feliz.
Voltei ao meu estado habitual, à minha corrupção mental indiscutivelmente assídua. Precipitei tudo o que em mim havia, para chegar de novo às inúmeras camadas que durante tanto tempo tentei descascar.

Já pousei a faca.

Já só escrevo para mim.


Esquecerei tudo o que disse. Nesse momento serei feliz outra vez. 

terça-feira, 26 de março de 2013

Acreditar

Acreditar no melhor é uma das características impostas aos otimistas. Acreditar significa subir, mas cair muitas vezes.

Quem não cai, não crê.

Infelizmente, a deceção, aquele espaço vazio entre a expectativa e a realidade, o vácuo que se cria no nosso interior, pressiona o coração como se não conseguíssemos expirar. É mesmo isso, é ar que não sai. É peso que nunca se liberta, ou então muito lentamente, não sei.
Somos repetitivamente malignos, cometemos os mesmos erros sem piedade alguma para connosco. Mas quem somos, afinal, para colocar a nossa integridade psíquica em causa, praticamente todos os dias?
Acreditamos, dizemos.
Vivemos à base de ilusões e de expectativas defraudadas, de facas atravessadas no ar tão pesadamente comprimido. Estou impossivelmente desiludida com os falsos degraus que a vida nos leva a tomar, já nem me sinto nostálgica.

Sinto-me traída.