Fui ao guarda-fatos dos pais. Muito sorrateiramente, tentei abrir sem ruído, a porta que ginga desde que me lembro. Felizmente, ninguém ouviu, algo que não me surpreendeu, porque já atingi com mestria, a arte de ser invisível.
Esta viagem ao armário dos meus pais deve-se à curiosidade de encontrar algo lá que nunca tenha visto. Talvez uma fotografia daquelas em que só se vê sorrisos, ou até cartas do pai para a mãe.
Encontrei algo diferente. O diário da mãe.
Folheei e deparei-me com uma data muito recente, 23 de Outubro de 2013, pelo que comecei a ler.
"O José chega hoje, não sei como o receber se não com lágrimas nos olhos. Sempre que penso em tudo o que se passou nestes últimos 4 meses sinto uma mágoa tão negra a atravessar o meu corpo, algo que nuca antes senti.
Hoje rolam na minha cabeça todas as palavras que disse nas inúmeras chamadas que fiz para Paris:
- Não desistas agora, amor, por favor! Vamos sobreviver a isto. Ele prometeu-te o dinheiro para o final de todo o trabalho. Acredita que todo este sofrimento vai valer a pena.
- Não aguento mais, quero voltar. A única coisa que ainda me mantém cá é a esperança de chegar a casa e poder dar-vos uma vida melhor.
- Homem, já te disse para deixares de pensar dessa maneira! Isso dos homens serem os únicos a ganhar dinheiro para a família já não existe nestes tempos. As coisas já não são assim.
- Como é que estás? E o Manuel?
- Estou bem, cá nos vamos aguentando. Tem sido difícil para o Manuel, porque estou quase sempre fora, em casa das patroas. Pouco tempo passo com ele, e coitado, sinto que ele precisa... Mas não penses muito em nós, que estamos bem. Não te preocupes que ainda hoje mandarei o dinheiro para a tua conta.
Triste o dia, em que nos bateram à porta para oferecer emprego ao meu marido. Triste, porque não fomos capazes de ver tudo o que se ia passar. Em dois dias roubaram-mo e levaram-no para França, exploraram-no como um cão e nunca lhe deram dinheiro em troca. Trabalhou de sol a sol, todos os dias da semana, na esperança de, no último ser recompensado. Mandaram-no embora de mãos a abanar, depois de todo o dinheiro que para lá mandei, para que ele pudesse comer, pelo menos. Tudo em vão."
Foi aí que todo esse dia fez sentido. O porquê do pai chegar a casa sem um sorriso, com o olhar cravado no chão e roupas imundas do suor, fruto desses meses de tortura. Para mim foi toda uma incógnita, aquele dia estranho, de chegada.
Caiu-me agora a última lágrima. Nunca pensei conseguir albergar tamanha tristeza.
Guardei o diário exactamente onde estava antes, e nunca mais lá voltei.